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A Constituição e o impedimento legal de um candidato à Presidência da República

segunda-feira, 13 de agosto de 2018
Postado por Gabriela Rollemberg Advocacia

Não é de hoje que candidatos cuja elegibilidade é contestada buscam permanecer na disputa eleitoral (e na própria urna), provocando discussões complexas e, às vezes, até mesmo alterações legislativas de ocasião. Também não é recente a controvérsia sobre qual seria a data final para que um candidato conseguisse uma decisão judicial que fosse capaz de garantir a sua elegibilidade.

Em 2009, porém, a permissão de campanha sub judice foi inserida no art. 16-A da Lei 9.504/97, e muitas soluções jurisprudenciais passaram a ser construídas no âmbito das eleições de prefeitos, vereadores, deputados, senadores e governadores. Da mesma forma, até a explícita admissão, em 2009, de fato superveniente posterior ao registro no art. 11, § 10, da Lei 9.504/97, muitos foram os julgados, resoluções e até súmulas do TSE a respeito desse assunto. Não foi diferente, inclusive, com a possibilidade de substituição de candidatos no curso do processo eleitoral, prevista no art. 13 da Lei 9.504/97.

Mas, se esse debate é de fato antigo, por que existe, hoje, tamanha celeuma em torno da candidatura do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (1)? Isso ocorre porque, apesar da antiguidade do debate, a questão nunca se apresentou em relação a uma candidatura à Presidência da República desde que vigente o atual texto constitucional (2).

A pergunta que me faço, há algum tempo, é se Lula tem mesmo razão ao pretender que lhe seja aplicada a jurisprudência formada a respeito das normas incidentes sobre as candidaturas de Prefeitos, Vereadores, Governadores, entre outros cargos eletivos; ou se, por outro lado, a Constituição já traria uma resposta contundente para a questão. Nesse sentido, cabe avaliar se a posição de “Chefe de Estado” e de “Chefe de Governo”, que o Presidente da República desempenha (diferentemente de Prefeito e de Governador), poderia alterar a conclusão.

A esse respeito, já adianto que a resposta que até então encontro é positiva: uma leitura atenta da Constituição revela que o incômodo instalado pela instabilidade de uma candidatura sub judice, em especial no caso do Presidente da República, não é apenas moral, mas, sobretudo, tem foro constitucional.

É claro que ninguém questiona o pressuposto de que os direitos políticos são fundamentais e merecem a máxima proteção. Também não se questiona que as inelegibilidades devem ser lidas pela lente da interpretação estrita e que o direito de exercer a capacidade eleitoral passiva não é menos importante que o direito de escolha, próprio da capacidade eleitoral ativa.

Entretanto, como não há direitos absolutos, a forma de limitação do exercício desses direitos é a mais rigorosa possível: precisa partir da integridade do texto constitucional (3). E foi nessa perspectiva que a Constituição da República fez suas opções: não só pela estabilização da decisão popular, 15 dias após a diplomação (art. 14, § 10) – afinal não há mais instrumentos para questionar ilícitos eleitorais após essa data –, mas também pela estabilização do processo eleitoral no momento do próprio registro do candidato (art. 77, § 4º).

Com efeito, a Constituição dedica seu Título IV à Organização dos Poderes, e o Capítulo II cuida do Poder Executivo. E é aqui, em sua primeira seção (arts. 76 a 86) que, além de regular a posse, substituição, impedimento, vacância e licença, a Constituição impõe regras para a eleição do Presidente e Vice-Presidente da República.

Sobretudo nesse Título do texto constitucional, considerando que o Chefe do Executivo desempenha a função de Chefe de Estado e de Chefe de Governo (art. 76), é que a Carta cuidou de fixar a regulação aplicável ao registro da candidatura do Presidente e do Vice-Presidente da República, limitando, por conseguinte, qualquer pretensão legal de disciplinamento diverso. Nesse contexto, a Constituição exige que o candidato seja “registrado por partido político” (art. 77, §2º), impõe o registro em chapa com o Vice-Presidente da República (art. 77, §1º) e impede a substituição ou a continuidade de candidatura em razão de “morte, desistência ou impedimento legal” que ocorra “antes de realizado o segundo turno” (art. 77, §4º).

Cabe, em face disso, investigar em que medida a pretensão de concorrer sub judice ou de se obter eventual provimento que afaste o impedimento legal ou, ainda, a pretensão de se substituirem os candidatos poderiam ser impactadas pela interpretação sistemática e íntegra do art. 77, § 4º, da Constituição.

Ora, o art. 77, § 4º, prevê que “se, antes de realizado o segundo turno, ocorrer morte, desistência ou impedimento legal de candidato, convocar-se-á, dentre os remanescentes, o de maior votação”. Com efeito, uma vez que os eventos “morte” e “desistência” não atraem maiores questionamentos acerca dos seus efeitos concretos no pleito, cabe discutir o que se compreende como impedimento legal para fins do mencionado dispositivo. Note-se que o texto constitucional não coloca limitações a esse respeito, e ainda deixa bem claro que se trataria, no caso, de qualquer impedimento previsto em “lei”.

Sobre a expressão “impedimento legal”, De Plácido e Silva aponta que isso seria “todo obstáculo ou proibição impostos por lei, para que certos atos jurídicos se pratiquem. Todos os atos praticados sob impedimento legal não surtem os efeitos jurídicos: nulos ou anuláveis são os mesmos atos. Também se considera impedimento legal o afastamento de uma autoridade do exercício de seu cargo […]” (4). Diante desse contexto, não há dúvidas de que as inelegibilidades e a ausência de uma condição de elegibilidade traduzem impedimentos legais e, logo, constitucionais para o exercício do direito de um cidadão de apresentar-se como candidato (capacidade eleitoral passiva ou elegibilidade).

Diante desse cenário, e sem maiores esforços hermenêuticos, vê-se que a norma mencionada expressamente afasta do processo eleitoral: a) o candidato que morre; b) o candidato que desiste; ou c) o candidato que incide em impedimento legal, após a realização do primeiro turno, sem possibilidade de substituição ou de se aguardar eventual fato superveniente. Em todos esses casos, o candidato que tenha obtido mais votos no primeiro turno deverá assumir, imediatamente, a disputa. De fato, não pode haver possibilidade de um candidato na situação de impedimento legal (assim como o morto e o desistente) participar do segundo turno.

Ainda assim, destaco que a perplexidade maior sobre o tema tem lugar quando a morte, a desistência ou o impedimento legal de quem pretende se candidatar à Presidência ou à Vice-Presidência da República ocorre antes do requerimento de registro da candidatura.

Com efeito, tenho que uma simples interpretação lógica e sistemática dos normativos vigentes conduz à conclusão de que essa situação não teria passado despercebida pelo constituinte brasileiro. Na verdade, o art. 77 c/c o art. 76 (que atribui ao Presidente a condição de Chefe de Estado e Chefe de Governo) só pode partir do pressuposto de que não haveria qualquer possibilidade de que alguém morto, desistente e com impedimento legal viesse a “entrar” na disputa. Por isso, aliás, é que esses normativos apresentam um tratamento jurídico explícito para tais situações quando elas sejam supervenientes, ou seja, quando elas surpreendam os eleitores em um pleito já em andamento. Assim também é que a parte final do art. 77, §4º, da Constituição contempla uma solução destinada a evitar que, no pleito em andamento, um dos candidatos alçados ao segundo turno venha a se sagrar automaticamente vencedor da disputa, sem obter, porém, a maioria absoluta dos votos dos eleitores.

A partir dessas considerações iniciais, o que pretendo aqui é enfrentar esses questionamentos  de forma sistematizada e contundente: desejo demonstrar que, não só a interpretação lógica e sistemática, também a interpretação literal da Constituição permite concluir que o disposto no art. 77, § 4º, abrange o intervalo entre o primeiro e o segundo turno das eleições para Presidente e Vice-Presidente da República e também o período anterior ao próprio registro do candidato. Ou seja, a aplicação daquele dispositivo alcança todas as fases do processo eleitoral, e pelas seguintes razões.

A primeira razão diz respeito ao fato de o comando do art. 77, § 4º, dirigir-se  a todo o período que antecede a realização do segundo turno [“antes de realizado o segundo turno”], sem fazer referência ao momento antecedente que encerraria a sua incidência. É verdade que a regra contida na segunda parte do dispositivo se volta especificamente ao impasse que se coloca depois que o primeiro turno já ocorreu. Esse recorte, num primeiro momento, poderia levar a crer que a norma do artigo estaria circunscrita apenas a esse segundo turno, e não, às demais fases do processo de escolha do Presidente da República e do seu Vice. Nada obstante, tal interpretação recortada não garantiria a integridade do texto constitucional, sobretudo considerando o Título, o Capítulo e a Seção em que está inserida a disposição normativa em análise.

Com efeito, um dos fundamentos centrais que alicerçam o segundo turno das eleições – e não apenas no Brasil – é de que essa fase do processo “não inaugura eleição autônoma, por não materializar novo processo eleitoral, tratando-se de critério constitucional para alcançar o princípio da maioria absoluta” (TSE, de 16.9.2014, no RO no 56635). Trata-se, portanto, de instrumento que se destina a concretizar a pretensão constitucional de eleger o Chefe do Poder Executivo com a maioria absoluta dos votos válidos. Para que o sistema se mantenha íntegro, portanto, as regras que sujeitam ambas as fases das eleições devem manter absoluta coerência entre si.

Não foi sem razão, aliás, que o art. 77, § 4º, apontou para o momento “anterior ao segundo turno”, sem, repita-se, restringir seu espectro de incidência temporal. Decerto, não faria qualquer sentido, desde uma leitura que garantisse a integridade constitucional, que o primeiro e o segundo turno seguissem regramentos distintos um do outro, isto é: no primeiro turno seria permitido que o candidato impedido concorresse, e ficasse a seu critério seguir na campanha, com a possibilidade de ser eleito; ao passo em que, no segundo turno, a norma impediria que o candidato prosseguisse na disputa, justamente para que não houvesse o risco de se eleger alguém impedido (o que já seria claramente impossível para alguém que tivesse morrido ou desistido da candidatura).

Veja-se que o art. 77, §4º não busca apenas preservar os votos do primeiro turno, porque nem cogita a possibilidade de o candidato impedido legalmente aguardar fato superveniente capaz de afastar o seu impedimento até as eleições. Seu afastamento do pleito é imediato, com a convocação do candidato mais votado no turno anterior.

Ou seja, da leitura atenta do conjunto de normas inseridas no sistema constitucional, há de se concluir que uma interpretação que admitisse a aplicação do disposto no art. 77, § 4º, apenas para segundo turno, romperia desde logo com a integridade do processo de escolha dos candidatos a Presidente e Vice-Presidente em uma eleição. Mas, há mais.

A segunda razão está no fato de o conjunto de dispositivos da Seção I da Constituição ter a clara pretensão de garantir o pleno exercício dos direitos políticos, em equilíbrio com a estabilidade demandada para o processo de escolha do Chefe do Poder Executivo. Reitere-se, a propósito, que em se tratando do Presidente da República, ele exercerá não só a função de Chefe de Governo, mas de Chefe de Estado no Brasil.

A estrutura constitucional monocrática do Poder Executivo federal, em nosso sistema presidencialista, é determinante na interpretação das normas que regulam a eleição. Ao enfeixar as funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo, o Presidente eleito afasta-se de um modelo centrado na confiança do Congresso. Esse fato não é irrelevante e fortalece a exigência de que o processo eleitoral para sua escolha seja o mais estável e transparente possível. A estratégia constitucional, nesse sentido, é exigir que a viabilidade do candidato esteja definida desde logo na data do requerimento do registro de candidatura.

Por essa razão, a Carta nem precisaria cogitar, de maneira textual, de impedimentos legais anteriores que acompanhassem o candidato no processo eleitoral, mas apenas daqueles que o surpreendam a posteriori (“antes do segundo turno”).  Com efeito, não é a data da eleição (seja no primeiro, seja no segundo turno) e menos ainda a data da diplomação que marcam o momento que demanda a estabilização do pleito e das expectativas dos eleitores. O recorte para a estabilidade do processo se dá logo no momento em que é iniciado o processo eleitoral, com o requerimento de registro da candidatura do interessado.

Portanto, o que o art. 77, §4º, garante, em última análise, é obstar que um candidato sujeito a um impedimento legal se apresentasse como uma possibilidade de voto para o eleitor às vésperas das eleições e pudesse, até mesmo, participar do pleito. Pretender que tal limitação se restringisse apenas ao segundo turno não parece fazer qualquer sentido.

Na verdade, desafia a lógica – e, pois, a integridade do sistema constitucional – admitir que um candidato já impedido antes do requerimento do registro ingressasse no pleito, nele se preservasse até a data das eleições em primeiro turno e, logo em seguida, iniciado o segundo turno, fosse dele retirado. Ainda mais contraditório seria sustentar uma interpretação no sentido de que a integridade do sistema passasse a depender do voluntarismo do candidato: sua desistência ou a substituição de sua candidatura às vésperas do pleito.

Esse aspecto também exige uma leitura e uma compreensão compatível com o texto constitucional. O candidato que possui impedimento legal anterior ao registro de candidatura, nos termos do art. 77, § 4º, não tem o direito de concorrer sub judice e, assim como ocorre no segundo turno, tem sua candidatura retirada da disputa. Não seria factível, nesse sentido, que ele tivesse a prerrogativa de desistir ou de substituir uma candidatura que sequer possui.

Note-se, a esse respeito, que o art. 77, § 4º não permite a substituição de candidatura em caso de morte, desistência ou impedimento legal, depois de realizado no segundo turno. E uma razão inquestionável relacionada a esse regramento decorre do fato de não ser possível preservar os votos já proferidos no primeiro turno. Essa, entretanto, não é a única razão para tal: a estabilidade do processo eleitoral não admite que impedimentos legais já existentes ou o voluntarismo do candidato alterem o equilíbrio da disputa. O imponderável exige uma solução explícita porque se impõe no curso das eleições; o que antecede o início do processo eleitoral, por ser um dado já conhecido de todos, não.

Sem dúvida, se o candidato não pode participar da disputa nos casos em que, antes do registro de candidatura, ocorra a morte, a desistência ou o seu impedimento legal, também não pode, por evidente, promover em tais casos a substituição da sua candidatura. Não apenas por eventual abuso de direito ou fraude – que seriam apuradas em Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) ou Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) –, mas porque a Constituição leva à sua retirada do pleito desde que o impedimento surja, isto é, no exato momento em que começa a campanha. A determinação de retirada por fato que antecede o registro de candidatura é, simplesmente, incompatível com a possibilidade de posterior desistência do candidato.

Da mesma forma, não é coerente com a sistemática do art. 77, § 4º, e com a posição assumida pelo Chefe do Poder Executivo (art. 76), admitir-se que a permanência de um candidato impedido, durante todo o primeiro turno das eleições, fundamente-se na perspectiva de concessão eventual de medida jurídica superveniente capaz de suspender os efeitos da sua inelegibilidade. O dispositivo prevê que o candidato impedido é retirado do segundo turno justamente para não expor o eleitor e o sistema de escolha à instabilidade de alguém que se apresenta com algum impedimento legal. Não se cogita que um candidato nessa situação aguarde, no curso do segundo turno, o tempo que lhe for mais conveniente para postular a suspensão do seu impedimento. Sua retirada da campanha é, pois, imediata, com a repescagem daquele mais votado no primeiro turno.

Pelos mesmos fundamentos e buscando-se idêntica finalidade, não há dúvidas de que tal sistemática deve ser aplicada para o primeiro turno. Assim como a Constituição obsta que alguém impedido aguarde um fato superveniente até a data das eleições em segundo turno – pois o impedimento determina a retirada imediata do impedido da campanha –, um candidato impedido não pode entrar ou permanecer na campanha também no primeiro turno.

Seria bastante contraditório deixar que um candidato impedido concorresse no primeiro turno para que, somente quando chegasse ao segundo turno, ele fosse retirado da disputa no primeiro dia da segunda fase do processo eleitoral. A propósito, vale lembrar que sequer há garantias de que uma eleição venha a alcançar o segundo turno; logo, se o candidato impedido fosse eleito em primeiro turno, ocorreria nesse caso exatamente o que o § 4º busca impedir: a eleição de um candidato impedido para tanto.

A terceira razão está no fato de a Constituição, ao indicar as hipóteses de “morte, desistência e impedimento legal”, fazê-lo em numerus clausus, apontando com exaustão as circunstâncias adversas que poderiam surgir após iniciado o processo eleitoral, surpreendendo os eleitores. Ora, por mais evidente que pudesse parecer, não se cogitaria a possibilidade de que alguém já morto, desistente ou com implemento legal fosse admitido no processo eleitoral. Pode-se dizer, nesse sentido, que o art. 77, § 4º, e sua interpretação íntegra da Constituição chancelariam o óbvio.

Observe-se que seria outra contradição sistêmica grave querer diferenciar o tratamento constitucional dado às circunstâncias morte e desistência, da hipótese de impedimento legal. Quanto a esse aspecto, é o próprio texto constitucional que as equipara. Indubitavelmente, tem de haver um paralelismo de tratamento entre desistência, morte e impedimento. Se alguém que morre ou desiste antes do registro da candidatura não pode, evidentemente, concorrer, o mesmo deve se aplicar àquele que tem um impedimento legal, também antes do registro da candidatura. Por disposição constitucional, a morte e a desistência que ocorrem antes do registro obstam a candidatura da pessoa interessada na mesma e exata medida que o impedimento legal anterior ao registro o faz.

Sem embargo, a norma constitucional não pode ser lida de forma que leve a interpretações contraditórias, absurdas ou que rompam a linearidade do sistema. Essa é a lógica de aplicação da golden rule, própria do sistema inglês, que serve para bem esclarecer a situação presente. “A regra é usada para afastar consequências de uma interpretação literal quando a interpretação pode levar a um manifesto absurdo ou a resultados que não são compatíveis com os princípios constitucionais”.

A quarta razão decorre de a Constituição tratar explicitamente do impedimento legal, pressupondo que ele seria uma circunstância superveniente ao pleito, tal como como o faz quanto à morte e à desistência. Ressalte-se que, mesmo por interpretação literal, o art. 77, § 4º, equipara a “morte, desistência ou impedimento legal”, assumindo, pois, uma premissa evidente, qual seja: a de que a morte, a desistência ou o impedimento também não podem ocorrer antes do início do processo eleitoral e permitir que o candidato ingresse nas eleições. De fato, o dispositivo não fala de morte, desistência ou impedimento legal “antecedente” por uma razão lógica: não se cogita que alguém morto, desistente ou com impedimento legal esteja no pleito “antes de realizado o segundo turno”. O morto e o desistente por razões que saltam aos olhos; e o impedido, por escolha constitucional.

Diante de todas essas razões, há de se concluir que o candidato a Presidente ou Vice-Presidente da República, assim como não pode permanecer e disputar o segundo turno das eleições em virtude da morte, desistência ou do impedimento legal, também não pode permanecer e disputar o primeiro turno das eleições diante dessas circunstâncias. Não há explicação racional, partindo da integridade constitucional, que fundamente uma interpretação diversa. Tal compreensão, aliás, também induz ao entendimento de que a Constituição não admite que o candidato impedido concorresse sub judice, por nutrir a mera expectativa de obtenção de uma liminar judicial fundada no art. 26-C da LC 64/90, que constituiria fato superveniente ao registro. A posição de Chefe de Governo e de Chefe de Estado que o candidato poderia ocupar deixa clara a opção constitucional por um modelo que rejeitaria a instabilidade de uma candidatura cujo impedimento legal antecedesse ao registro. Em qualquer caso, portanto, o desistente, o morto ou o impedido jamais poderia participar do pleito eleitoral.

Um último questionamento a se enfrentar, a partir das reflexões acima, diz respeito ao fato de a leitura do art. 77, § 4º, aqui proposta, também se aplicar a Prefeitos, Vice-Prefeitos, Governadores e Vice-Governadores, tendo em mente o disposto no art. 28 e no art. 29, II, da Constituição (5). Muito embora a conclusão apresentada neste trabalho não considere apenas o art. 77, isoladamente, e tenha como pilar central o fato de que o Chefe do Poder Executivo Federal desempenha as funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo – diferentemente dos prefeitos e governadores –, essa não é uma tese que se possa descartar sem maior aprofundamento. Destaque-se, ainda assim, que esse não é o objeto central do presente artigo.

De todo modo, é inquestionável que a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral está formada e é bastante sólida quanto à aplicação do art. 10, § 11, art. 13 e art. 16-A da Lei 9.504/97, bem como do art. 26-C da LC 64/90, a eleições de prefeitos, vereadores, governadores, senadores e deputados. Para que se pudesse promover alteração interpretativa a esse respeito, seria preciso promover viragem jurisprudencial, sujeita à análise de incidência do art. 16 da Constituição Federal.

Situação bastante diversa, porém, é a incidência desses dispositivos quando interpretados de forma conjunta com os artigos 76 a 86 da Carta Magna, sobretudo sob a perspectiva de impedimento legal que antecedesse o registro de uma candidatura. Hipótese como tal, repita-se, nunca foi analisada pelo Tribunal Superior Eleitoral, desde a vigência da Constituição de 1988. Não se pode falar, por conseguinte, em jurisprudência formada, tampouco em incidência do art. 16 do texto constitucional. Segurança jurídica não se confunde com previsibilidade absoluta e deve se conformar com o ineditismo que é próprio da vida. Não pode ser diferente no Direito.

Listadas as razões pelas quais se compreende que um candidato a Presidente ou Vice-Presidente da República, com impedimento legal antecedente ao registro, não tem o direito de permanecer no processo eleitoral, mesmo sub judice, busca-se sistematizar a matéria em uma perspectiva temporal.

Nesse sentido, é possível identificar quatro momentos em que as referidas situações de “morte, desistência ou impedimento legal de candidato” poderiam se materializar no processo eleitoral, a saber: a) antes de iniciado o processo eleitoral; b) entre o registro de candidatura e o primeiro turno; c) entre o primeiro e o segundo turno; e d) depois do segundo turno. O recorte dessa análise, como já ressaltado, direciona-se à candidatura de Presidente e Vice-presidente da República.

Quando a morte, desistência ou impedimento legal ocorre antes do registro de candidatura (hipótese “a”), os arts. 76 e 77, § 4º, da Constituição impõem uma filtragem às normas eleitorais, pelos quatro fundamentos expostos acima. Assim, há de se ter em mente as seguintes conclusões: i) o art. 16-A da Lei 9.504/97 não se aplica às eleições para Presidente e Vice-Presidente da República; ii) o art. 10, § 11, da Lei 9.504/97 somente permite fato superveniente que suspenda a inelegibilidade (art. 26-C da LC 64/90) até a data do registro de candidatura; e iii) o art. 13 não admite substituição de candidato à Presidência e Vice-Presidência da República cuja retirada do processo eleitoral seja determinada por razões que antecedem o registro da candidatura.

Já na hipótese “b” acima, em que a morte, desistência ou impedimento legal ocorre entre o registro de candidatura e o primeiro turno, busca-se solucionar o imponderável que é superveniente. Nesse caso, não faria sentido ler o § 4º do art. 77 como se ele fosse aplicável apenas para o segundo turno, sem qualquer simetria com o primeiro turno. A diferença está em que, não tendo ainda havido votação, a Constituição optou por não explicitar um mecanismo para solucionar o impasse. Deixou a solução da hipótese para as normas infraconstitucionais.  Foi, inclusive, o que se deu diante da trágica morte do candidato Eduardo Campos, posteriormente substituído pela candidata Marina Silva, nas eleições presidenciais de 2014.

Sobre a hipótese “c”, por sua vez, em que a morte, desistência ou impedimento legal ocorre entre o primeiro e o segundo turno, aplica-se tout court o art. 77, § 4º, e o mecanismo previsto na sua parte final. A norma deixa bem claro que, ocorrendo quaisquer das circunstâncias acima, antes de realizado o segundo turno, o candidato não segue no pleito, sendo retirado do processo eleitoral imediatamente. Embora o comando da norma se dirija a todo o período que antecede a realização do segundo turno, sem indicar a partir de quando, o mecanismo soluciona também o impasse que se coloca depois que o primeiro turno já ocorreu.

Finalmente, na hipótese “d”, em que a morte, desistência ou impedimento legal ocorre após as eleições, a Constituição dá tratamento diferente para cada uma das circunstâncias. Em caso de morte ou desistência, convoca-se o Vice-Presidente (art. 79), e, em caso de impedimento legal, seria necessário travar um debate sobre o cabimento de recurso contra expedição de diploma (RCED) – o que não será objeto deste artigo.

Em síntese, é inevitável reconhecer que têm razão Luiz Fernando Casagrande Pereira e Fernando Neisser quando afirmam que “não faz sentido, sob qualquer aspecto que se analise o tema, a simultaneidade de registro de candidaturas e o início dos atos de propaganda eleitoral” (6). Entretanto, com todo o acatamento, e diferentemente do que esses autores sustentam, a leitura íntegra da Constituição, que leva em conta a posição do Presidente da República como Chefe de Governo e de Chefe Estado, faz com que se chegue à conclusão de que a alegada falta de sentido não demandaria alteração legislativa para se resolver.

Assim, em que medida as conclusões deste artigo repercutem na pretensão eleitoral de um candidato a Presidente ou a Vice-Presidente da República, que possui um impedimento anterior ao registro de candidatura? É possível impedir que ele requeira o seu registro?

Ora, em nenhum caso se poderia impedir o requerimento de registro de candidatura e, da mesma forma, o direito ao contraditório do interessado. Seguem-se as mesmas regras aplicáveis a todos aqueles que litigam em juízo, incluindo aquelas que incidem sobre as pretensões cautelares. O que a leitura sistemática dos arts. 76 e 77, § 4º, indica, no entanto, é a ausência de plausibilidade da pretensão de se ingressar e de se continuar na disputa eleitoral com um impedimento que antecede o registro e cuja incidência não pode ser modificada após o seu requerimento.

Em suma, tal circunstância impacta no seguinte: i) tornam-se mais robustos os fundamentos que viabilizam o deferimento de uma cautelar que impeça a candidatura sub judice; ii) a ausência de plausibilidade em qualquer pretensão de seguir em campanha, com fundamento no art. 16-A da Lei 9.504/97, tendo em vista que não há mais a possibilidade de buscar fato superveniente até a data da eleição ou diplomação; e iii) diante do impedimento legal antecedente, torna-se infundada a pretensão de seguir no pleito ao argumento de que poderia desistir ou substituir sua candidatura, com fundamento no art. 13 da Lei 9.504/97.

Os defensores da tese (7) de que seria, sim, possível manter um candidato com impedimento legal sub judice no pleito eleitoral, sustentam que a maior parte das inelegibilidades poderia ser revertida, ao menos até a data das eleições. E, nesse sentido, o candidato poderia permanecer no pleito até o referido momento, tentando obter decisão judicial que suspendesse seu impedimento. Pois exatamente aqui reside a divergência que se apresenta neste artigo: para Presidente e Vice-Presidente da República, a leitura íntegra da Constituição exige que, na data do registro de candidatura, o candidato não possua nenhum impedimento legal. Assim como a morte e a desistência, o impedimento legal antecedente é fator que determina, inafastavelmente, a sua retirada do pleito.

Impedir que um candidato siga no processo eleitoral não é pouco grave e depende de decisão judicial, em juízo definitivo ou cautelar, no âmbito do processo de registro de candidatura. Havendo impedimento legal anterior ao registro, nada mais poderá ser feito para se garantir a candidatura a Presidente e Vice-Presidente da República. Com efeito, a verossimilhança do direito para o deferimento de uma tutela antecipada que impeça a sequência da candidatura passa a depender, apenas, de uma questão de direito: se, de fato, incide, ou não, o impedimento legal sobre o candidato.

Assim, “no âmbito de uma AIRC, se demonstrada a ausência absoluta de perspectiva de êxito do pedido (alta probabilidade de êxito da AIRC, em contrapartida) é, sim, possível o deferimento da tutela antecipada, com a consequente revogação do registro provisório que se outorga indistintamente a todos os candidatos que o requerem, extirpando liminarmente requerimento sem chance alguma de êxito. É sempre bom lembrar que o juízo sumário não é superficial, como pensam muitos, mas sim “exame atento e consequente (…) em face de um material probatório ainda incompleto” (8). Também reforçam esse ponto de vista Flávio Cheim Jorge, Ludgero Liberato e Marcelo Abelha Rodrigues (9).

Enfim, o que está em jogo não é uma questão de entrechoque entre a garantia fundamental de participação política, que exige a proteção do contraditório, e a estrita observância das regras do jogo democrático previstas ex ante na legislação eleitoral. O que está em jogo, isso sim, é um valor de índole constitucional de preservação da estabilidade institucional que determina a adoção de um tratamento diferenciado às eleições presidenciais em se tratando de um processo que diz respeito não somente à chefia do Executivo da União, mas, sobretudo, à do próprio Chefe de Estado da República Federativa do Brasil.

* Marilda de Paula Silveira advoga para o candidato a presidente da República pelo Partido Novo, João Amoêdo.

** O JOTA ofereceu aos advogados do candidato Lula o mesmo espaço para sua manifestação. A defesa afirmou em resposta que “não cogita a substituição do nome do candidato do PT à Presidência”.

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(1) No último domingo, o ex-presidente Lula foi escolhido, em convenção, para disputar a 2 cadeira de Presidente da República. Diante de sua condenação criminal, em órgão colegiado, por crime doloso contra a Administração Pública (hipótese que atrai o art. 1º, I, e da LC 64/90) defende seu direito de participar da campanha com fundamento no seguinte: 1º) não há inelegibilidade “aritmética ou chapada”, o que somente poderia ser apurado em contraditório, sobretudo em matéria de direitos políticos que são fundamentais; 2º) o art. 26-C da LC 64/90 permite que o candidato busque suspender sua condenação criminal, no órgão competente para julgar seus recursos, de modo que ele poderia, ainda, postular tal medida no STJ e no STF e 3º) essa suspensão da condenação criminal – que reestabeleceria sua elegibilidade – poderia ser obtida até a data da diplomação, segundo jurisprudência do TSE que interpreta o art. 11, §10 da Lei 9.504/97.

(2) Em 2006, antes da inserção do art. 16-A na Lei 9.504/97, dois candidatos tiveram seus registros indeferidos, um deles revertido (RCPR 125 e RCPR 137). Contudo o debate sobre a possibilidade de seguirem na campanha não ocorreu, limitando-se o julgamento à análise do registro.

(3) Por todos, Lenio Streck: “Já a integridade é duplamente composta, conforme Dworkin: um princípio 3 legislativo, que pede aos legisladores que tentem tornar o conjunto de leis moralmente coerente, e um princípio jurisdicional, que demanda que a lei, tanto quanto possível, seja vista como coerente nesse sentido. A integridade exige que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, constituindo uma garantia contra arbitrariedades interpretativas; coloca efetivos freios, por meio dessas comunidades de princípios, às atitudes solipsistas-voluntaristas. A integridade é antitética ao voluntarismo, do ativismo e da discricionariedade. Ou seja: por mais que o julgador desgoste de determinada solução legislativa e da interpretação possível que dela se faça, não pode ele quebrar a integridade do Direito, estabelecendo um “grau zero de sentido”, como que, fosse o Direito uma novela, matar o personagem principal, como se isso — a morte do personagem — não fosse condição para a construção do capítulo seguinte. […] A integridade é virtude política a ser adotada por uma autêntica comunidade de princípios (para além de uma associação de indivíduos meramente circunstancial, ou pautada num modelo de regras), e se expressa pela coerência principiológica na lei, na Constituição e na jurisprudência. Aqui já de pronto transparece uma questão nova: a coerência e integridade são antitéticas ao pamprincipiologismo, pela simples razão de que a “invenção” de um “princípio” sempre é feita para quebrar a integridade e a cadeia coerentista do discurso. Portanto, eis aí um bom remédio contra essa construção arbitrária de coisas que os juristas chamam de “princípios” e que não passam de álibis retóricos para fazer o drible da vaca na lei e na própria Constituição. O STF e o STJ devem, armados com esses dois poderosos mecanismos, assumir o papel de snipers epistêmicos. Coerência não é simplesmente se ater ao fato de que cada nova decisão deve seguir o que foi decidido anteriormente. Claro que é mais profunda, porque exige consistência em cada decisão com a moralidade política (não a comum!) instituidora do próprio projeto civilizacional (nos seus referenciais jurídicos) em que o julgamento se dá. A ideia nuclear da coerência e da integridade é a concretização da igualdade, que, por sua vez, está justificada a partir de uma determinada concepção de dignidade humana. A integridade quer dizer: tratar a todos do mesmo modo e fazer da aplicação do Direito um “jogo limpo” (fairness — que também quer dizer tratar todos os casos equanimemente). Exigir coerência e integridade quer dizer que o aplicador não pode dar o drible da vaca hermenêutico na causa ou no recurso, do tipo “seguindo minha consciência, decido de outro modo”. O julgador não pode tirar da manga do colete um argumento (lembremos do artigo 10 do CPC) que seja incoerente com aquilo que antes se decidiu. Também o julgador não pode quebrar a cadeia discursiva “porque quer” (ou porque sim).”

(4) DE PLACIDO E SILVA. Vocabulário jurídico. 3 Ed. Forense, 1991. v. 1, p. 417. No mesmo 4 sentido Ives Grandra Martins. Comentários à Constituição – Celso Ribeiro Bastos. p. 209.

(5) Art. 28. A eleição do Governador e do Vice-Governador de Estado, para mandato de quatro 5 anos, realizar-se-á no primeiro domingo de outubro, em primeiro turno, e no último domingo de outubro, em segundo turno, se houver, do ano anterior ao do término do mandato de seus antecessores, e a posse ocorrerá em primeiro de janeiro do ano subseqüente, observado, quanto ao mais, o disposto no art. 77. Art. 29. O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício mínimo de dez dias, e aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal, que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: […] II – eleição do Prefeito e do Vice-Prefeito realizada no primeiro domingo de outubro do ano anterior ao término do mandato dos que devam suceder, aplicadas as regras do art. 77, no caso de Municípios com mais de duzentos mil eleitores.

(6) https://www.conjur.com.br/2018-jul-26/opiniao-direito-candidato-impugnacao-campanha

(7) https://www.conjur.com.br/2018-jul-26/opiniao-direito-candidato-impugnacao-campanha

(8)http://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/ bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RBA_n.02.10.PDF http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI283596,11049-

(9)Pedido+de+registro+de+candidatura+natimorto+e+putrefacao+da+democracia

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