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Cotas de gênero e raça na perspectiva do Direito Eleitoral e processos legislativos

terça-feira, 18 de abril de 2023
Postado por Gabriela Rollemberg Advocacia

Fonte: Conjur

Por Paulo Miguel Andrade

A igualdade de oportunidades é um dos princípios fundamentais de uma democracia. No entanto, a realidade brasileira é marcada por desigualdades históricas e estruturais, que afetam, sobretudo, a população negra e as mulheres. Nesse contexto, as cotas afirmativas têm se mostrado uma importante ferramenta para promover a inclusão social e combater a discriminação no nosso país.

Extensão de cotas afirmativas para candidatos ao legislativo
A questão da representatividade política é uma das principais demandas da sociedade brasileira atualmente. É fato que a desigualdade social e econômica no país se reflete na falta de representatividade de grupos marginalizados no poder legislativo, o que acaba por agravar ainda mais a exclusão desses grupos das decisões estratégicas governamentais e da construção de políticas públicas voltadas para suas necessidades.

É importante destacar que já existem, apesar de insuficientes, políticas de cotas afirmativas em outras esferas, por consequência lógica dos princípios e objetivos constitucionais, como no acesso à educação e a cargos públicos, por exemplo.

Um exemplo de Estado que adotou essa política é a Bahia. A legislação estadual reserva 30% das vagas para candidaturas de mulheres e 30% para candidaturas de pessoas negras, nos partidos e coligações. O Estado da Bahia é um dos mais negros do Brasil, com 76,3% da população se autodeclarando negra ou parda, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) de 2020. Apesar disso, a presença de negros nos espaços de poder ainda é muito limitada, o que torna a adoção de cotas raciais uma medida importante para garantir maior representatividade desses grupos.

Um exemplo prático dessa política pode ser visto na cidade de Salvador, capital da Bahia. Em 2020, as eleições municipais na cidade tiveram um resultado histórico em relação à representatividade de mulheres e negros no Poder Legislativo. Dos 43 vereadores eleitos, 25 são mulheres e 19 se autodeclararam negros, o que corresponde a 44% das cadeiras da Câmara Municipal. A adoção de cotas raciais contribuiu para esse resultado, já que garantiu a presença de candidatos negros em posições privilegiadas nas listas partidárias.

Neste sentido, a Lei das Eleições (Lei nº 9.504/1997) prevê que cada partido político deve reservar o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo, o que pode ser considerado uma forma de cotas de gênero. Além da Bahia, alguns outros estados brasileiros já adotam essa política. São eles:

- Bahia: a legislação estadual reserva 30% das vagas para candidaturas de mulheres e 30% para candidaturas de pessoas negras, nos partidos e coligações;

- Ceará: a legislação estadual reserva 30% das vagas para candidaturas de mulheres e 20% para candidaturas de pessoas negras, nos partidos e coligações;

- Mato Grosso do Sul e Paraná: as legislações estaduais reservam 30% das vagas para candidaturas de mulheres e 10% para candidaturas de pessoas negras, nos partidos e coligações;

É importante destacar que as proporções e os requisitos podem variar de acordo com a legislação de cada estado, bem como com a decisão dos partidos e coligações em adotar ou não as cotas.

Nesse contexto, a implementação de cotas afirmativas para candidatos ao legislativo municipal e/ou estadual surge como uma alternativa para ampliar a diversidade de vozes e perspectivas na política, em relação aos grupos historicamente excluídos, como mulheres e pessoas negras. Sendo fundamental que essa iniciativa se estenda para todo o brasil como medida de efetivação dos objetivos fundamentais da nossa nação, dispostos no artigo 3º da nossa Carta Magna, senão vejamos:

"Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação."

Além disso, a adoção de políticas afirmativas como as cotas raciais para candidaturas pode contribuir para a construção de um Brasil mais justo e igualitário. Como destacado por diversos estudiosos, a falta de representatividade de grupos historicamente marginalizados no poder legislativo pode reforçar as desigualdades sociais e a exclusão dessas populações. A presença de mulheres e negros no Poder Legislativo pode garantir a defesa de pautas e políticas públicas que levem em conta as necessidades desses grupos, além de contribuir para uma maior democratização da política brasileira.

As cotas raciais para candidaturas são apenas uma das diversas medidas que podem ser adotadas para garantir maior representatividade das minorias no Poder Legislativo. Outras políticas, como a adoção de cotas para cargos de direção nas Câmaras municipais e a promoção de campanhas de conscientização e engajamento político para grupos historicamente marginalizados, também podem contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária.

Apesar dos avanços conquistados até aqui, ainda há muito a ser feito no que diz respeito à participação desses grupos na política.

Processo Eleitoral
Distribuição de recursos públicos de campanha, tempo de rádio e TV

Desde a promulgação da Lei das Eleições (Lei nº 9.504/97), a distribuição de recursos públicos de campanha, tempo de rádio e TV tem sido tema de grande relevância nas discussões políticas no Brasil. Recentemente, as questões de gênero e raça têm ganhado destaque nesse debate.

Assim, a distribuição de recursos públicos de campanha, tempo de rádio e TV é sim questão central e de alta relevância. Como é sabido, a legislação eleitoral brasileira estabelece que os partidos devem destinar, no mínimo, 30% do total de candidaturas para cada gênero. Essa regra é uma importante ferramenta para ampliar a presença das mulheres na política, mas não é suficiente. É preciso ir além e considerar também a questão racial.

Sobre tal questão, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por meio da Consulta nº 0600306-47/DF, e o Supremo Tribunal Federal (STF), na decisão cautelar de ação ADPF 738, estabeleceram diretrizes para os partidos políticos procederem na distribuição de recursos considerando a questão de gênero e raça. No entanto, ainda é possível notar a falta de representatividade de mulheres e negros em cargos políticos, principalmente nos legislativos.

Convém pontuar que a Lei das Eleições, em seu artigo 10º, §3º, estabelece um mínimo de 30% de candidaturas de cada gênero em cada partido político, além de assegurar o acesso dos partidos ao financiamento público de campanhas. Porém, segundo a Consulta TSE n° 0600306-47/DF, nada impede que um partido invista um valor maior de recursos financeiros em candidatas mulheres do que a proporção mínima exigida pela legislação.

Ademais, é importante destacar a necessidade de considerar a questão racial na distribuição de recursos. A ADI nº 5.617/DF, por exemplo, discutiu a constitucionalidade do critério de raça no sistema de cotas para as eleições, mas ainda é necessário avançar nesse debate para garantir a representatividade de negros nos cargos políticos.

Retomando as diretrizes estabelecidas na Consulta TSE n° 0600306-47/DF, necessário pontuar o relevante voto do relator, ministro Luís Roberto Barroso, que nos autos traz tal raciocínio de forma didática:

"(...) a destinação de recursos a pessoas negras deve ocorrer dentro da destinação de recursos por gênero, e não de forma global. Isso porque a evasão de investimento nas candidaturas de homens negros e o baixo investimento de recursos nas candidaturas de mulheres negras se verificou justamente a partir de desvios na aplicação prática da reserva de recursos para candidaturas femininas".
(...) (i) os recursos públicos do Fundo Partidário e do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e o tempo de rádio e TV destinados às candidaturas de mulheres (decisões judiciais do STF na ADI nº 5617/DF e do TSE na Consulta nº 0600252-18/DF), devem ser repartidos entre mulheres negras e brancas na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações;
(ii) os mesmos recursos públicos de financiamento e a distribuição de tempo de rádio e TV na propaganda eleitoral gratuita devem ser destinados às candidaturas de homens negros na exata proporção das candidaturas apresentadas pelas agremiações."

Em igual sentido, o ministro Ricardo Lewandowski, em decisão cautelar (ADPF 738) no STF, em 10 de setembro de 2020, estabeleceu as diretrizes de como os partidos devem proceder na distribuição de gênero e raça:

"(...) o volume de recursos destinados a candidaturas de pessoas negras deve ser calculado a partir do percentual dessas candidaturas dentro de cada gênero, e não de forma global. Isto é, primeiramente, deve-se distribuir as candidaturas em dois grupos - homens e mulheres. Na sequência, deve-se estabelecer o percentual de candidaturas de mulheres negras em relação ao total de candidaturas femininas, bem como o percentual de candidaturas de homens negros em relação ao total de candidaturas masculinas. Do total de recursos destinados a cada gênero é que se separará a fatia mínima de recursos a ser destinada a pessoas negras desse gênero".

Restando assim, entendimento já pacificado nos tribunais superiores, ser de fundamental importância que os partidos políticos adotem medidas efetivas para a promoção da igualdade de gênero e raça na política brasileira, inclusive por meio da distribuição adequada de recursos financeiros e tempo de rádio e TV. Além disso, a presença dos mais diversos atores e representantes sociais na produção legislativa e no processo legislativo é fundamental para que as demandas da população sejam atendidas de forma justa e igualitária.

cDa reserva de vagas em cargos de comissão e funções de confiança na estrutura do Poder Executivo federal
Além da adoção de cotas raciais para candidaturas, outras políticas afirmativas têm sido discutidas e adotadas em diversos setores da sociedade brasileira, incluindo áreas do setor público historicamente nunca alteradas frente a tais reflexões. Recentemente, no Poder Executivo Federal, o governo decidiu reservar até 30% de vagas em cargos de comissão e funções de confiança em sua estrutura, incluindo administração direta, autarquias e fundações, para pessoas negras. A decisão foi tomada em março de 2023, por meio do Decreto nº 11.443/2023, como forma de garantir maior representatividade de negros em posições de liderança no serviço público federal.

Essa medida representa um avanço significativo na luta contra o racismo institucional e a exclusão de negros em espaços de poder e decisão. No entanto, é importante destacar que essa política não deve ser vista como uma solução única e definitiva para o problema da desigualdade racial no Brasil. É necessário que outras medidas sejam adotadas em conjunto, como a promoção da igualdade salarial, a garantia de acesso à educação de qualidade para todos os grupos sociais e o combate ao racismo estrutural presente em diversas esferas da sociedade.

Dessa forma, o decreto nº 11.443/2023 pode servir como um exemplo e uma inspiração para que outros estados e municípios adotem medidas semelhantes em suas respectivas esferas de poder. A reserva de vagas em cargos de comissão e funções de confiança para pessoas negras pode ser uma política efetiva para garantir maior diversidade e representatividade em espaços de poder e decisão, contribuindo para a construção de um país mais justo e igualitário. No entanto, é preciso ressaltar que políticas afirmativas devem ser implementadas de forma cuidadosa e planejada, considerando a realidade de cada contexto e buscando sempre o diálogo e o consenso entre diferentes grupos e setores da sociedade.

Conclusão
Em síntese, a adoção de cotas raciais para candidaturas aos postos de trabalho e representação do Legislativo municipal, estadual e federal, é medida importante para garantir maior representatividade de grupos historicamente marginalizados, como mulheres e negros, no Poder Legislativo.

Por conseguinte, a implementação de políticas afirmativas, como as cotas raciais para candidaturas e a reserva de vagas em cargos de comissão e funções de confiança, é um importante passo para combater a desigualdade racial no Brasil. No entanto, essas medidas devem ser vistas como um processo contínuo e complexo, que requer a participação ativa de diferentes atores sociais na sua produção e execução.

É fundamental que as vozes das comunidades e dos movimentos sociais sejam ouvidas e consideradas nos processos de tomada de decisão, tanto na esfera municipal, estadual como federal. A presença de representantes de diferentes grupos e setores sociais na produção legislativa e no processo legislativo é essencial para a construção de políticas públicas mais inclusivas e representativas.

Nesse sentido, é importante que a sociedade brasileira continue lutando por uma participação mais efetiva nas esferas de poder e decisão, garantindo a diversidade e a representatividade necessárias para a construção de um país mais justo e igualitário. Somente com a união e a colaboração de todos os setores e grupos sociais será possível alcançar uma sociedade mais justa e inclusiva para todos.


Referências bibliográficas

  • BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
  • BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 jul. 2010.
  • BRASIL. Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997. Estabelece normas para as eleições. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 1º out. 1997.
  • BRASIL. Lei nº 14.020, de 6 de julho de 2020. Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 7 jul. 2020.
  • Bahia. Tribunal Regional Eleitoral. Eleições 2020. Disponível em: http://www.tre-ba.jus.br/eleicoes/eleicoes-2020. Acesso em: 28 mar. 2023.

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