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Por Isadora Formenton Vargas e Rafael Maffini: Contratações públicas sensíveis a gênero e o Decreto nº 11.430/23

quinta-feira, 30 de março de 2023
Postado por Gabriela Rollemberg Advocacia

Fonte: Conjur

Por Isadora Formenton Vargas e Rafael Maffini

Em 8 de março de 2023, foi publicado o Decreto nº 11.430, destinado a regulamentar a nova Lei de Licitações e Contratações (nº 14.133/21) para dispor sobre a exigência, em contratações públicas, de percentual mínimo de mão de obra constituída por mulheres vítimas de violência doméstica e sobre a utilização do desenvolvimento, pelo licitante, de ações de equidade entre mulheres e homens no ambiente de trabalho como critério de desempate em licitações, no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.

Justamente na data de referência internacional à mulher, a publicação do decreto parece contribuir com aquela frase costumeira e merecidamente crítica à restrição da lembrança aos direitos das mulheres a uma determinada data, no sentido de que "Não nos deem flores, nos deem…". Com tal norma infralegal, poderíamos cogitar de um "não nos deem flores ... nos deem regras jurídicas capazes de gerarem efeitos concretos no âmbito da busca pela equidade de gênero no ambiente de trabalho, como instrumento ao desenvolvimento econômico e social".

A União Europeia denomina esse tipo de alcance das contratações públicas sobre políticas de equidade de gênero de Gender-responsive Public Procurement (GRPP) [1], em uma tradução livre seriam as nossas CPSG, "Contratações Públicas Sensíveis a Gênero". E o grande potencial de efetividade das previsões deste Decreto nº 11.430/23 para a promoção da equidade de gênero pode ser identificado tendo em vista que as contratações públicas, conforme último dado apresentado pelo Ipea, representam 9,9% do PIB do Brasil (2019), considerando que a média entre 2010 e 2019 inclusive é superior, equivalente a 12% do PIB [2].

Pois bem, o Decreto nº 11.430/23 veio justamente a regulamentar tais preceitos legais contemplados na NLLC. No caso do percentual mínimo da mão de obra, a que dispõe o artigo 25, §9º, da lei, o referido decreto define que tal percentual é de 8% das vagas, conforme artigo 3º, caput. No mesmo artigo, em seu §1º, especifica-se que esse percentual mínimo se aplica a contratos com quantitativos mínimos de 25 colaboradores, que, se acordo com o §2º, deverá ser mantido durante toda a execução contratual, e, no §3º o decreto também cuidou de prever que as referidas vagas abrangem mulheres trans, travestis e outras possibilidades do gênero feminino, nos termos do disposto no artigo 5º da Lei nº 11.340/06, e que serão destinadas prioritariamente a mulheres pretas e pardas, observada a proporção de pessoas pretas e pardas na unidade da federação onde ocorrer a prestação do serviço, de acordo com o último censo demográfico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

O artigo 4º do Decreto nº 11.430/23 dispõe, por sua vez, que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos e o Ministério das Mulheres firmarão acordo de cooperação técnica com as unidades responsáveis pela política pública de atenção a mulheres vítimas de violência doméstica, com o objetivo, de acordo com o §1º do mesmo artigo, de apoio ao atendimento do percentual mínimo de vagas às mulheres vítimas de violência doméstica. No mesmo artigo, encontra-se prevista a disponibilização dos dados mediante autorização expressa das titulares, assegurando cláusula de sigilo da condição de vítima de violência doméstica.

Adiciona-se a isso uma cereja do bolo: a condição de vítima de violência doméstica consiste em dado sensível. Mais sensível ainda por tratar-se de dado pessoal de trabalhador, de modo que o Decreto nº 11.430/23 prevê, no artigo 6º, que a Administração e a empresa contratada assegurarão o sigilo da referida condição.

Já no que se refere ao desempate nos processos licitatórios, previsto no artigo 60 da NLLC, o artigo 5º do Decreto nº 11.430/23 prevê que serão consideradas ações de equidade, respeitada a seguinte ordem: I - medidas de inserção, de participação e de ascensão profissional igualitária entre mulheres e homens, incluída a proporção de mulheres em cargos de direção do licitante; II - ações de promoção da igualdade de oportunidades e de tratamento entre mulheres e homens em matéria de emprego e ocupação; III - igualdade de remuneração e paridade salarial entre mulheres e homens; IV - práticas de prevenção e de enfrentamento do assédio moral e sexual; V - programas destinados à equidade de gênero e de raça; e VI - ações em saúde e segurança do trabalho que considerem as diferenças entre os gêneros.

Nesse sentido, dúvidas podem existir acerca de como serão as formas de aferição, pela Administração, e de comprovação, pelo licitante [5], das referidas ações de equidade, para fins de desempate em licitações, mas uma certeza se tem: deverá haver uma comprovação séria e suficiente à demonstração empírica de que tais ações são concretizadas pelas empresas, não se tratando de meras artificialidades.

A exemplo das regras aplicáveis às microempresas e empresas de pequeno porte, cooperativas, bem como o estímulo ao mercado nacional, a inovações tecnológicas e ao meio ambiente, este Decreto nº 11.430/23 consiste em mais um exemplo de externalidade própria dos processos licitatórios [6], no sentido de que o Estado pode induzir comportamentos a partir das contratações públicas. Em linhas gerais, emprega-se aqui o termo "externalidade licitatória" justamente para designar a utilização de processos licitatórios e, em especial, das contratações públicas como ferramentas para a consecução de interesses públicos que vão além das vantagens endoprocessuais que um certame licitatório poderia propiciar.

É o que também prevê o Objetivo nº 12 da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas, de "assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis", ao dispor que uma das metas de desenvolvimento deste objetivo está na "promoção de práticas de compras públicas sustentáveis, de acordo com as políticas e prioridades nacionais" [7]. Assim, as referidas externalidades dos processos licitatórios devem observar o compromisso de atendimento às políticas prioritárias nacionais ao desenvolvimento sustentável.

Nisso se insere a necessidade de compreender o "desenvolvimento nacional sustentável", previsto como princípio das contratações públicas, tanto na Lei nº 8.666/93, na qual foi incluído em 2010, pela Lei nº 12.349, quanto na Lei nº 14.133/21, a partir das suas três dimensões: econômica, social e ambiental.

Por isso, o desenvolvimento nacional sustentável, "como forma de induzir que a licitação também se presta a promover uma política pública" [8], confere uma nova cor ao princípio da vantajosidade, que, por sua vez, aparece, em suas variações, 16 vezes na Lei nº 14.133/21, especialmente como um dos objetivos do processo licitatório ao lado do desenvolvimento sustentável —, no sentido de selecionar-se a proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso à Administração, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto [9]. Na linha do que antes referido quanto às externalidades licitatórias, tem-se casos em que o Poder Público pode — ou deve — se utilizar das licitações e, por conseguinte, das contratações públicas visando a uma vantagem além daquela que poderia ser originar de aspectos econômico-financeiros direta e imediatamente decorrentes da própria competição entre interessados na contratação com a Administração Pública.

Como destaca a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o "value for money", isto é, essa relação de qualidade/preço própria da definição de vantajosidade que orienta as compras públicas, continua a ser um princípio fundamental, mas atualmente deve abranger aqueles aspectos já referidos: ambientais, econômicos e sociais [10].

E ao adquirir a natureza de ferramenta estratégica ao fomento dessas finalidades, as contratações públicas compatibilizam, a um só tempo, a satisfação das necessidades não só diretas que as justificam, sob o aspecto de "atividade-meio" [11], como também indiretas, cujos efeitos se percebem como externalidades positivas que alcançam muito além daqueles que compartilham a relação jurídica contratual, aptas a "materializar um fim estatal" [12].

Por isso, também no âmbito da função social dos investimentos [13], além de abrangerem o atendimento às metas e aos objetivos da Agenda 2030, as externalidades positivas do Decreto nº 11.430/23 estimulam a concretização do que se entende por condutas empresariais responsáveis [14].

A partir deste primeiro contato com o Decreto nº 11.430/23, verifica-se a possibilidade de identificar tal norma infralegal como efetiva ferramenta de promoção às Contratações Públicas Sensíveis a Gênero (CPSG), tema, de um lado, ainda incipiente em âmbito nacional. Todavia, pretendeu-se demonstrar que as externalidades licitatórias, de outro lado, destinadas a concretizar objetivos mais amplos do que simplesmente a necessidade que justifica a contratação pública, não é, por si só, questão "nova", mas poderá receber novos e atualizados contornos ao passo que se identificam novos objetivos e prioridades nacionais.


[1] European Institute for Gender Equality. Gender-responsive Public Procurement. Disponível em: thttps://eige.europa.eu/gender-mainstreaming/toolkits/grpp. Acesso em: 09 mar. 2023.

[2] IPEA. Compras públicas para inovação no Brasil. André Tortato Rauen (org.), 2022, p. 57. Disponível em:  https://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/11623/16/Compras_publicas_para_inovacao_no_Brasil.pdf. Acesso em: 09 mar. 2023.

[3] Isso porque a partir de 01/04/2023, será a única lei geral de licitações em solo pátrio, sem prejuízo da aplicação da Lei 8.666/93 para as contratações celebradas antes da NLLC (artigo 189 da Lei 14.133/21), bem como para aquelas ocorridas nos dois primeiros anos de sua vigência, quando se mostrou possível a utilização de uma ou outra das leis gerais (artigo 191 c/c artigo 193, II, da Lei 14.133/21).

[4] No artigo 25, §9º, II, da Lei 14.133/21 há norma similar em relação a pessoas oriundas ou egressas do sistema prisional.

[5] Decreto nº 11.430/23. Artigo 5º (...) §2º Ato do Secretário de Gestão e Inovação do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos disporá sobre a forma de aferição, pela administração, e sobre a forma de comprovação, pelo licitante, do desenvolvimento das ações de que trata o §1º.

[6] Sobre o tema, vide BRAGA, Márcia Bello de Oliveira. Contratação administrativa como instrumento de fomento econômico a partir da entrada em vigor da Constituição da República de 1988. Dissertação de mestrado. Disponível aqui. Acesso em: 09 mar. 2023.

[7] ONU. Agenda 2030: desenvolvimento sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel. Acesso em: 09 mar. 2023.

[8] HEINEN, Juliano.Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/2021. Salvador: JusPodvium, 2021, p. 24.

[9] Lei nº 14.133/21. Artigo 11. O processo licitatório tem por objetivos: I - assegurar a seleção da proposta apta a gerar o resultado de contratação mais vantajoso para a Administração Pública, inclusive no que se refere ao ciclo de vida do objeto; (...)

[10] OCDE. Public Procurement and Responsible Business Conduct. Disponível em: https://www.oecd.org/governance/public-procurement/procurement-and-rbc/ . Acesso em 09 mar. 2023.

[11] HEINEN, Juliano.Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei nº 14.133/2021. Salvador: JusPodvium, 2021, p. 24.

[12] Ibidem, p. 24.

[13] MAFFINI, Rafael. MARÇAL, Thaís. ESG e o projeto de nova lei geral de licitações e contratos administrativos. Migalhas de Peso. 11 mar. 21. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/341604/esg-e-o-projeto-de-nova-lei-geral-de-licitacoes-e-contratos. Acesso em: 09 mar. 2023.

[14] OCDE. Public Procurement and Responsible Business Conduct. Disponível em: https://www.oecd.org/governance/public-procurement/procurement-and-rbc/ . Acesso em 09 mar. 2023.

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