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Viabilidade jurídica da candidatura avulsa dos povos indígenas

terça-feira, 30 de maio de 2023
Postado por Gabriela Rollemberg Advocacia

Fonte: Conjur

Por Túlio de Oliveira Dorinho

O exercício da capacidade eleitoral passiva por parte dos povos indígenas ainda se encontra com pouca efetividade. Torna-se importante, assim, identificar as causas dessa invisibilidade que decorre de uma grave, mas talvez desejada pelas estruturas de poder, deficiência de representatividade dos povos originários. Poder-se-ia apontar como causa dessa inexpressiva representatividade a ausência de um direito informacional válido que pudesse evitar falhas na comunicação intercultural, de forma que o diálogo não estivesse sempre viciado pelas regras do discurso hegemônico, ou mesmo a inexistência de um processo de adequação normativa que permitisse abraçar uma real e efetiva participação indígena, em uma perspectiva plural e intercultural. Contudo, a exigência de filiação partidária talvez seja o principal obstáculo ao pleno exercício daquela faceta dos direitos políticos por parte desses grupos ainda subalternos e invisibilizados.

Para participarem diretamente da mesa de poder da democracia os povos indígenas precisam garantir seus representantes por meio do voto.  Essa perspectiva requer, nas palavras de Gersem Baniwa (2021, p. 19):

"[...] por um lado, processo de formação e empoderamento dos povos indígenas nos marcos da organização política do Estado; por outro lado demanda, também, e principalmente, adequação e habilitação dos instrumentos normativos e operacionais do Estado para acolher e atender a cidadania diferenciada dos povos indígenas."

Com efeito, o princípio constitucional da igualdade em sua vertente material já foi aplicado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos para afastar a necessidade de filiação partidária no que se refere aos povos indígenas. Ao analisar o caso Yatama vs. Nicarágua a Corte, delineando o conteúdo do artigo 23, parágrafos 1. b, e 2  da Convenção Americana de Direitos Humanos, decidiu da seguinte forma, em síntese:

1) O princípio da proteção igualitária e efetiva da lei e de não discriminação constitui um dado marcante no sistema de tutela dos direitos humanos consagrado em muitos instrumentos internacionais e desenvolvido pela doutrina e jurisprudência internacionais. Na atual etapa da evolução do Direito Internacional, o princípio
fundamental de igualdade e não discriminação ingressou no domínio do jus cogens. Sobre ele descansa a estrutura jurídica da ordem pública nacional e internacional e permeia todo o ordenamento jurídico;

2) O artigo 23 da convenção consagra os direitos à participação na direção dos assuntos públicos, a votar, a ser eleito, e a ter acesso às funções públicas, os quais devem ser garantidos pelo Estado em condições de igualdade;

3) A participação por meio do exercício do direito a ser eleito supõe que os cidadãos possam se postular como candidatos em condições de igualdade e que possam ocupar os cargos públicos sujeitos a eleição se conseguirem obter a quantia de votos necessários para isso;

4) A Corte entende que, de acordo com os artigos 23, 24, 1.1 e 2 da Convenção, o Estado tem a obrigação de garantir o gozo dos direitos políticos, o que implica que a regulamentação do exercício destes direitos e sua aplicação sejam conformes ao princípio de igualdade e não discriminação, e devem ser adotadas as medidas necessárias para garantir seu pleno exercício. Esta obrigação de garantir não se cumpre com a simples emissão de uma norma que reconheça formalmente estes direitos, mas requer que o Estado adote as medidas necessárias para garantir seu pleno exercício, considerando a situação de debilidade ou desamparo em que se encontram os integrantes de certos setores ou grupos sociais;

5) Ao analisar o gozo destes direitos pelas supostas vítimas no presente caso, deve-se levar em consideração que se trata de pessoas que pertencem a comunidades indígenas e étnicas da Costa Atlântica da Nicarágua, que se diferenciam da maioria da população;

6) Com base nas considerações anteriores, a Corte considera que a limitação analisada nos parágrafos precedentes constitui uma restrição indevida ao exercício de um direito político, que implica um limite desnecessário ao direito a ser eleito, levando em conta as circunstâncias do presente caso, às quais não são, necessariamente, comparáveis a todas as hipóteses de agrupamentos para fins políticos que pudessem se apresentar em outras sociedades nacionais ou setores de uma mesma sociedade nacional.

Observa-se que a Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou no caso Yatama vs. Nicarágua que não há, na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, disposição que permita sustentar que os cidadãos somente podem exercer o direito a se candidatar a um cargo eletivo através de um partido político. Torna-se importante esclarecer, contudo, que para se chegar a esta decisão a Corte considerou, com preponderância, o fato de a restrição ter atingido comunidades indígenas que se diferenciam da maioria da população em suas crenças, línguas, costumes e formas de organização.

Nesse sentido, tem-se que em vários capítulos da decisão o princípio da igualdade, em sua vertente material, foi utilizado como razão de decidir, na medida em que a dificuldade de efetivo exercício dos direitos políticos pelos povos indígenas foi considerada ao se permitir a candidatura avulsa. Interpretação conforme a partir de um bloco que busca mecanismos de materialização e efetivação da Constituição e a eliminação de sombras nominalistas importantes que pairam sobre a capacidade dos povos indígenas de serem donos de seu próprio destino.

Saliento que o entendimento da excepcionalidade do caso Yatama vs. Nicarágua restou confirmado pela Corte Interamericana quando esta fez um distinguishing no julgamento do caso Castañeda Gutman Vs. México. Para o Órgão as situações peculiares que justificaram a decisão anterior não estavam evidenciadas no novo caso, no qual a parte que postulava a possibilidade de candidatura avulsa não teria alegado e provado representar os interesses de algum grupo vulnerável ou marginalizado da sociedade que estiveram impedido formal e materialmente de acessar qualquer das alternativas que o sistema eleitoral mexicano oferecia para participar das eleições. Entender a diferença na razão de decidir é essencial para que não se cometa perigosos equívocos em eventual adoção de forma generalizada das conclusões no caso Yatama vs. Nicarágua.

Para que participem efetivamente do processo eleitoral e alcancem a necessária autodeterminação prevista no artigo 231 da Constituição há que se permitir, porque juridicamente viável, a candidatura avulsa dos povos indígenas. Com efeito, a restrição de participar através de um partido político impõe aos povos originários uma forma de organização alheia a seus usos, costumes e tradições. E aqui não se defende que o Pacto de São José da Costa Rica deva se sobrepor ao artigo 14, §3º, inciso V, da CF/1988. Ora, a tese da supralegalidade preconiza que os tratados internacionais sobre direitos humanos não possuem o condão de produzir efeitos sobre normas constitucionais dado o caráter infraconstitucional de seus dispositivos. Teriam, contudo, a capacidade de suspender a eficácia de toda a legislação infraconstitucional que com eles conflite. Conforme já decidido pelo STF, não se trata de revogação, mas sim de suspensão de eficácia (STF, 2008, p. 21-28).

O que se pretende demonstrar, portanto, é que nos termos da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos quando do julgamento do caso Yatama vs. Nicarágua afigura-se razoável o deferimento de candidaturas sem filiação partidária com vistas à realização de fins comuns quando isso é pertinente e inclusive necessário para favorecer ou assegurar a participação política de grupos específicos da sociedade, levando em conta suas tradições e ordenamentos especiais. O dispositivo internacional do Pacto paralisaria a eficácia da legislação eleitoral infraconstitucional nos casos de conflito material, mormente o artigo 9º da Lei nº 9.504/1997 — Lei das Eleições e especificamente em relação aos povos indígenas.

O Estado deve estabelecer mecanismos que garantam efetividade ao exercício dos direitos políticos por parte dos povos originários, vale dizer, verdadeira emancipação, descolonialidade, de forma a conferir densidade normativa ao multiculturalismo declarado no artigo 231 da Constituição Federal que até o momento não passa de uma norma simbólica utilizando-se do pensamento de Marcelo Neves. Não adianta a acumulação de declarações de direitos quando não se tem afetação nas estruturas de poder, de modo que vícios políticos do passado perduram e comprometem a efetivação dos direitos formalmente declarados. O problema, segundo Roberto Gargarella, é que a organização do poder ainda continua muito fechada aos povos indígenas já que permeada por estruturas autoritárias (GARGARELLA, 2015, p. 102), ou conforme Carlos Frederico Mares as oligarquias continuem tentando destruir ou impedir a construção de sociedades fraternas (MARÉS, 2021, p16-47).

Com efeito, um sistema de justiça que se diz avançado, mas que não consegue, suficientemente, garantir participação política a esses grupos historicamente invisibilizados por uma dita epistemologia dominante, seria como ter uma grande máquina sem vida como menciona Max Weber (1994, p. 5).

Portanto, considerando-se que não há, na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, disposição que permita sustentar que os cidadãos somente podem exercer o direito a se candidatar a um cargo eletivo através de um partido político; considerando-se o precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Yatama vs. Nicarágua que trata de situação específica envolvendo povos indígenas; considerando-se o status supralegal do Pacto de São José da Costa Rica, apresenta-se a hipótese a seguir:

1) Exige-se, em regra, no processo eleitoral brasileiro a filiação partidária como condição de elegibilidade nos termos do artigo 14, §3º, inciso V, da CF/1988;

2) Ao se aplicar o princípio constitucional da igualdade em sua vertente material, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o precedente da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Yatama Vs. Nicarágua, defende-se a possibilidade de candidatura avulsa dos povos indígenas. Isso porque ter-se-ia a paralisação da eficácia do conteúdo normativo quanto à exigência de filiação partidária prevista no artigo 9º da Lei nº 9.504/97 — Lei das Eleições — especificamente em relação aos povos originários.

Os direitos humanos devem ser considerados e concretizados em cada caso particular. Assim, mostra-se de grande relevância considerar as peculiaridades que levaram a Corte Interamericana a decidir pela possibilidade de candidatura avulsa no caso Yatama Vs. Nicarágua. A igualdade não é um ponto de partida, senão um ponto de chegada ao qual se devem dirigir os esforços do Estado, isto porque a diferença de quem goza efetivamente de direitos daqueles que apenas desfrutam de suas promessas se chama injustiça.

_________________

Referências
BANIWA, Gersem. Indígenas e processos eleitorais no século XXI. In: SISTEMATIZAÇÃO das normas eleitorais: eixo temático VII: participação das minorias no processo eleitoral. Brasília, DF: Tribunal Superior Eleitoral, 2021. Coleção SNE. Fase II, v. 8. No prelo.

CORTE INTERAMERICANA. Caso Yatama Vs. Nicarágua. Sentença de 23 de junho de 2005 (Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas). Disponível em: https://summa.cejil.org/api/files/1607016314247pzzjc807nkl.pdf. Acesso em: 10 jan. 2023.

GARGARELLA, Roberto. La sala de máquinas de la Constitución: Dos siglos de constitucionalismo en América Latina. Buenos Aires: Katz editores, 2015.

MARÉS, Carlos Frederico. (2021). Gênese Anticolonial do Constitucionalismo Latino-Americano. Revista Direito e Praxis. Rio de Janeiro, Vol. 12, nº 01, 2021, p. 16-47.

NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. Guarulhos: Editora Acadêmica, 1994.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Diálogos sobre o fim do mundo. [Entrevista realizada por] Eliane Brum, El país, Madrid, 29 set. 2014. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/29/opinion/1412000283_365191.html. Acesso em: 01 jan. 2023.

WEBER, Max. Economia e sociedade. 3ª ed. Brasília: UnB, 1994. v.1.

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